A grafiteira Soberana Ziza foi introduzida à arte de rua no Centro Cultural da Juventude Ruth Cardoso (CCJ), na Vila Nova Cachoeirinha, zona norte paulistana. Desde esse primeiro encontro, em 2006, Ziza estabeleceu uma trajetória que, atualmente, tensiona os espaços da arte contemporânea. Uma marca do crescimento do seu trabalho são os grandes murais que decoram boa parte das paredes do CCJ.
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“Naquele momento, eu não era uma artista de destaque”, lembra Ziza sobre o início da carreira. “Enquanto eu estava nesse lugar, eu me nutri, me fortaleci”, relata sobre o processo de amadurecimento que envolveu muito estudo e conexões com outras partes da cidade. “Fui buscar em outros lugares informações, acesso à academia, para voltar de uma outra forma e também contribuir para esse território”, acrescenta.
Trabalhando em outras linguagens e materiais, como o uso de tecido, a artista tem buscado abrir espaço em locais onde as pessoas negras e periféricas ainda encontram barreiras. “A gente está se colocando nas bienais [de arte], se colocando nessas grandes exposições, mas, porque hoje a gente tem curadores negros, curadores que têm essa delicadeza de construir um lugar onde todos se sintam representados”, enfatiza.
Nessa caminhada, Ziza reconhece o esforço das mulheres que vieram antes dela, quebrando barreiras.
“Não posso deixar de falar da Frente Nacional de Mulheres do Hip Hop, que foi ali onde tudo aconteceu. Onde eu também me encontrei enquanto uma artista, oficineira, onde eu também pude entender que isso seria arte, mas que também seria um lugar onde eu poderia encontrar uma renda”, diz sobre o projeto que tem como uma das idealizadoras a rapper Sharylaine.
A figura feminina, representada de diversas formas, é o principal foco de trabalho da grafiteira.
“As mulheres são sempre as protagonistas do meu trabalho. São como se fossem as condutoras dessas novas histórias. Nos meus murais, elas sempre ganham esse protagonismo”, destaca em entrevista para o programa Caminhos da Reportagem, da TV Brasil.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista com Soberana Ziza.
Agência Brasil:
Como é começar a sua trajetória hip hop aqui, no Centro Cultural da Juventude, e, hoje, ser parte do espaço com esses murais?
Soberana Ziza:
Naquela época, eu era somente uma jovem monitora, estava fazendo parte do projeto modelo aqui. Eu moro nesse lugar, o meu território é aqui. Eu sempre quis fortalecer o meu território, mas eu também entendia que, estando longe desse território, indo ao centro buscar informações, eu poderia voltar de uma outra forma pra esse território. Enquanto eu estava nesse lugar, eu me nutri, me fortaleci, mas eu fui buscar em outros lugares informações, acesso à academia, para voltar de uma outra forma e também contribuir para esse território, que eu também continuo sendo uma das atuantes.
Naquele momento, eu não era uma artista de destaque. Hoje, eu me encontro como um espelho para essas artistas, mulheres, para esses outros artistas daquela época que
também puderam me fortalecer. Ser destaque nesse lugar, não só aqui, mas também em outros lugares educacionais. Eu entendo que a arte também carrega isso junto, que é a educação. Muitas escolas aqui da região têm obras minhas. O hip hop sempre esteve ligado à educação.
Ele [hip hop] não é algo que é desprendido, não é somente um espetáculo, se desdobra, está dentro do ensino integrado. A importância não só cultural, não só na parte das artes visuais, mas também ele carrega algo que é muito importante para gente, que é essa ligação forte com as crianças, com os jovens.
Atualmente, a gente está vendo uma grande movimentação das batalhas em lugares da cidade, sempre protagonizado por jovens desses territórios, mas o que não nos desliga desse movimento que iniciou com os MCs. Isso é só um desdobramento pela visão dessa nova juventude que transforma, mas usa essas artes como
uma forma de eles se colocarem.
Agência Brasil:
Tiveram mulheres que te inspiraram na cena do hip hop?
Soberana Ziza: Olha, eu fui muito agraciada, porque nessa oficina que eu fiz aqui neste lugar, fui iniciada por duas grafiteiras: a Tikka e a Kátia Suzue. Foram elas que deram esse primeiro passo. Eu fui acolhida dentro desse núcleo, que e o grafite.
Mas, falando do hip hop em si, eu não posso deixar de falar da Frente Nacional de Mulheres do Hip Hop, que foi ali onde tudo aconteceu. Onde eu também me encontrei enquanto uma artista, oficineira, onde eu também pude entender que isso seria arte, mas que também seria um lugar onde eu poderia encontrar uma renda, que eu poderia ministrar oficinas, que eu poderia plantar sementes.
O hip hop tem esse ciclo. Você aprende, mas também você planta sementes. Na Frente Nacional, eu entendi isso, com essas mulheres, que foram um espelho para mim, igual à
[rapper] Sharyline, que é uma pessoa que ainda hoje a gente aprende muito com ela, é uma visionária, uma pessoa que sempre compartilha [conhecimentos]. Foi isso que mudou, de certa forma, o meu pensar e me fortaleceu para ser quem eu sou hoje.
Agência Brasil:
A maneira como você chegou ao hip hop tem a ver também com esse trabalho que você faz, trabalhando muito a figura feminina?
Soberana Ziza:
Sim, as mulheres são sempre as protagonistas do meu trabalho. São como se fossem as condutoras dessas novas histórias. Nos meus murais, elas sempre ganham esse protagonismo. A gente está vendo aqui, esse início dessa mulher [aponta para os murais do CCJ], e na outra ponta a gente tem uma outra mulher. É como se fosse uma mulher [que] inicia uma fala, a gente tem a gestação desse debate, dessa história, a gente reconstrói essa história e inicia novamente essa história.
A figura feminina é onde eu pude me reconectar. Eu aprendi com a minha mãe, com a minha avó, com essas personalidades do hip hop, com essas personalidades do grafite.
Agência Brasil:
Queria retomar um pouco também
essa construção de espaços de representatividade. Você falou de estar na periferia, mas ocupando espaços no centro também, como é que funciona isso?
Soberana Ziza:
Eu gosto sempre de dizer de um projeto que eu tenho chamado Estamos Vivos. Por muito tempo, essa parte central [da cidade] tinha nome e personalidade. Nunca era protagonizado por atuantes das pontas da cidade. Esse projeto veio justamente para dizer que nós, artistas das pontas, estamos vivos e não precisamos de ninguém para ilustrar a gente. A gente é o protagonista nessa fala e nessa narrativa.
A gente levou para o Parque Minhocão duas empenas [parte dos prédios sem janelas], que é esse lugar também para o artista. Todo artista quer esse destaque na cidade, esse lugar de comunicação com as pessoas. E a gente no hip hop também, né? Quem não quer subir num palco e pegar um microfone e ter o seu lugar de destaque ali? A gente, enquanto artista, como uma multiartista, a gente queria esse lugar de diálogo. [O Parque Minhocão é o uso do Elevado João Goulart aos fins de semana, fechado para carros. O projeto da artista promove grafite em prédios que ficam nessa área, na parte central de São Paulo.]
Cada um teve esse lugar para criar um debate, principalmente esse lugar decorativo da cidade. Virou um lugar instagramável [bom para ser fotografado e divulgado nas redes sociais]. Mas, a gente, que tem essa base no hip hop, sempre traz esse lugar de debate, esse lugar de conhecimento, como se fosse um grande livro aberto para as outras pessoas que passam ali. Muitas das vezes a gente inicia esse debate nas ruas, mas termina na roda de conversa. E é isso que se torna rico, porque aproxima também o artista das pessoas.
Agência Brasil: Várias vezes você falou de transmissão de conhecimento, você ainda dá aulas? Você ainda transmite conhecimento pra galera que está chegando?
Soberana Ziza:
Sim, atualmente, eu faço muitas formações para professores. Eu entendo que esse uso das ruas é democrático, ele não é como uma galeria, ele não exclui as pessoas, você não precisa pagar ingresso para entrar. E, principalmente, aqui na zona norte, eu venho debatendo esse território negro que existe aqui no nosso bairro, que é o bairro da Casa Verde.
Eu também me coloco como uma protagonista, uso esse meu trabalho como um lugar de encontro também para os professores. Meu trabalho também fala sobre esse continente que sofreu também esse apagamento, que é o continente africano. A gente pode falar um pouco sobre isso que chega como decoração para gente, como os têxteis africanos. Eu recoloco, reconto, aprendo, na verdade, também troco com eles.
Entendo que o tecido hoje não é somente algo decorativo, ele é algo que é de cada povo. Ele consegue contar, através dos seus grafismos, das flores, a história desse povo. Eu uso a arte, principalmente, que é a criação desses grandes murais, como aqui a gente tem esse mural que fala sobre os têxteis africanos. [aponta para um de seus trabalhos no CCJ]
Agência Brasil: Você falou de tecido, você tem vários trabalhos agora que são com tecido, que se distanciam um tanto do grafite, do hip hop, como você mesma estava dizendo. Como é que foi essa transição? Como é que foi esse interesse?
Soberana Ziza:
Eu sou da época que, para ser grafiteiro de verdade, tinha que fazer 100% com spray. Depois, fui
usando a técnica dos muralistas, o pincel, e, hoje, eu me coloco nesse lugar também de sair dessa parede. Eu sempre usei como uma ferramenta a parede, e, hoje, eu uso o tecido, principalmente, para falar sobre o apagamento.
Eu uso tecido voil, ele tem essa transparência, então eu crio camadas de história. Quando a gente coloca essas camadas de história, uma história vai sendo construída através dessas grandes camadas que uma dá para ver através das outras. Estou muito mais com um olhar nas artes contemporâneas, eu coloco esse tecido como uma ferramenta, como um material de destaque desse meu trabalho.
Assista na TV Brasil ao Caminhos da Reportagem sobre hip hop:
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